Stephen King não é apenas um autor prolífico ou um best-seller contínuo há quase cinco décadas. Ele é, para muitos, o arquiteto moderno do medo. Sua obra formou o imaginário coletivo de gerações de leitores e, por extensão, de cineastas, roteiristas e até críticos literários. King atravessou modas, crises do mercado editorial, ceticismo acadêmico e ataques de elitismo cultural — e saiu ileso, vendendo mais de 400 milhões de livros no processo.
Mas a permanência de King como “mestre do terror” exige uma análise que vá além da aclamação popular. Afinal, por que suas obras continuam funcionando? Por que o medo que ele constrói em páginas extensas, muitas vezes com múltiplas linhas temporais e narrativas fragmentadas, ainda encontra eco nas angústias contemporâneas? E o que It, talvez sua obra mais emblemática, diz sobre a maneira como o horror pode ser, no fundo, um gênero sobre a memória, o trauma e a falência das instituições?
O terror como catarse social
Lançado em 1986, It é, à primeira vista, um romance sobre um palhaço assassino em uma cidadezinha americana. Mas qualquer leitor que vá além das primeiras 50 páginas percebe que essa descrição é reducionista. O verdadeiro horror em It não está apenas em Pennywise, a criatura mutante que se manifesta em formas que remetem aos medos infantis mais profundos. O pavor está em Derry, a cidade fictícia onde o mal não apenas se manifesta, mas é acobertado, nutrido e perpetuado pela indiferença social.
King cria uma alegoria poderosa sobre como as comunidades ignoram o sofrimento dos seus — uma crítica feroz ao conservadorismo americano e à tendência de naturalizar o trauma como parte da formação moral. Derry é a cidade onde crianças somem e ninguém parece se importar. Onde a violência doméstica é tolerada. Onde o racismo e o bullying estão no subterrâneo da convivência e ninguém denuncia. O mal é sistêmico. E Pennywise é apenas o seu avatar.
A infância como campo de batalha
Se há um traço recorrente na obra de Stephen King, é a centralidade da infância. Em It, o Clube dos Otários — um grupo de sete crianças marcadas pelo medo, pela solidão e pela dor — representa um microcosmo dos marginalizados. Eles não apenas enfrentam um monstro, mas a falta de respostas, de escuta, de amparo. O horror é enfrentado entre bicicletas, fitas cassete e traumas silenciosos, reforçando uma das premissas mais fundamentais do terror kinguiano: o medo começa cedo — e raramente termina.
O retorno desses personagens à cidade, quase três décadas depois, para cumprir a promessa de destruir Pennywise definitivamente, é também o retorno ao trauma. E It nos pergunta: é possível vencer o medo sem enfrentá-lo de frente? E mais: é possível sobreviver à infância?

A crítica que hesita em levar o terror a sério
Apesar do sucesso e da longevidade de Stephen King, parte da crítica literária ainda resiste em conceder-lhe o status de “autor sério”. Essa barreira, oriunda do preconceito contra o gênero de terror, revela mais sobre o sistema literário do que sobre a qualidade da obra. It é um romance de mais de mil páginas que mistura realismo psicológico, sobrenatural, crítica social e construção coral de personagens com uma fluidez que poucos autores conseguem replicar.
A complexidade estrutural de It — com sua narrativa não-linear, alternância entre passado e presente, múltiplos pontos de vista e simbolismo denso — está à altura de grandes romances considerados “clássicos”. King, porém, é penalizado por transitar entre o popular e o literário, como se isso o desabonasse. Essa tensão entre mercado e prestígio acompanha sua trajetória desde o início, mas talvez o verdadeiro desafio para a crítica não seja reconhecer sua importância, e sim entender por que foi tão difícil aceitá-lo até agora.
Do papel às telas: o fenômeno transmidial
A adaptação cinematográfica de It em 2017 (e sua sequência em 2019) apresentou uma nova geração ao universo de Derry e aumentou exponencialmente o alcance da obra. Embora as adaptações tenham perdido parte da densidade emocional e das nuances simbólicas do livro, elas foram fundamentais para renovar o fôlego cultural da história. O palhaço Pennywise — encarnado de maneira memorável por Bill Skarsgård — tornou-se ícone do terror pop contemporâneo.
Mas a viralização do medo — o susto como clipe — é também parte do problema: o terror de King raramente é sobre o susto. É sobre o que sobra depois que a luz volta. As adaptações, em especial a segunda parte de It, pecam ao priorizar o horror visual em detrimento da construção psicológica. E isso não é apenas um erro de roteiro: é uma perda conceitual.

O legado e a permanência do medo
Stephen King, hoje com mais de 70 anos, continua escrevendo em ritmo incansável. Desde o lançamento de It, ele publicou mais de 40 livros. E embora nem todos mantenham o mesmo nível de complexidade, há uma constante em sua produção: o horror é sempre uma lente, não um fim. King usa o sobrenatural para escancarar o real. Seus monstros não são o verdadeiro problema. São os abusadores, os omissos, os fanáticos, os cínicos — todos aqueles que vivem em Derry, ou em qualquer outra cidade real.
E talvez seja por isso que ele continua a ser lido, estudado e debatido. Porque enquanto houver medo, trauma e desigualdade, haverá espaço para que seus livros digam o que muitas vezes evitamos encarar. E It, entre todos, é sua obra-prima não apenas por causar medo, mas por revelar que, no fundo, o verdadeiro terror somos nós mesmos.

Rafael da Silva Pereira nasceu em São Paulo, capital, atualmente cursa História pela Universidade Estácio de Sá. Fascinado pelo lado sombrio do horror desde muito jovem, encontrou no terror clássico sua principal fonte de inspiração — influenciado por obras cinematográficas como Halloween (1978), Sexta-feira 13 (1980) e O Massacre da Serra Elétrica (1974).
É autor do livro “Religiões UFO: ufolatria que invade mentes”, publicado pela Editora Cia do Mistério, onde investigou com rigor histórico e olhar crítico as manifestações religiosas ligadas ao fenômeno ufológico.
Além da escrita, Rafael também é divulgador científico e editor-chefe da Revista Giordano, dedicada à difusão da ciência com uma abordagem acessível e interdisciplinar.
Está escrevendo agora seu primeiro terror chamado “Bootzamon”, no qual Rafael dá voz às sombras que sussurram por entre milharais, casas e estradas de Black Hollow. Mais do que uma história de terror, este livro é um mergulho no imaginário de uma América rural marcada por segredos antigos, pactos silenciosos e um mal que nunca desaparece — apenas espera a próxima colheita.