Quando falamos em terror na literatura, é quase inevitável pensar em H.P. Lovecraft. Muito antes de Stephen King criar seus demônios interiores nas cidades fictícias do Maine, Lovecraft já arquitetava horrores mais antigos que o próprio tempo — entidades insondáveis, saberes proibidos e uma fragilidade humana dilacerada pela revelação de que o universo é, no fundo, indiferente à nossa existência.
Entre suas obras mais emblemáticas está “O Horror de Dunwich”, conto escrito em 1928, mas cuja força permanece atual. Mais do que um relato de assombração em uma cidade esquecida da Nova Inglaterra, Dunwich é uma peça-chave para entender a essência do que se convencionou chamar de horror cósmico — um subgênero que Lovecraft não apenas ajudou a definir, como elevou a um patamar filosófico.
A ruína que habita o campo
Dunwich não é apenas um cenário: é uma personagem em si. Uma vila decadente, isolada, onde o tempo parece ruir e a natureza assume contornos de podridão e delírio. O espaço é carregado de significados: aqui, o terror não vem da sombra do monstro atrás da porta, mas do que está além da porta, onde nossos olhos não foram feitos para enxergar. A presença de Wilbur Whateley, o híbrido humano-sobrenatural nascido de um ritual obscuro, acende a fagulha do pânico. Mas o verdadeiro horror está em seu irmão invisível — fruto de uma linhagem que desafia as leis da biologia e da razão.
Lovecraft constrói em Dunwich um microcosmo de suas obsessões mais profundas: o medo do conhecimento, a degradação da carne, a ameaça do que é ancestral e impensável. E o faz com a linguagem ritualística e repleta de adjetivos que o tornaram inconfundível — e, para alguns, indigesto. Mas por trás da verborragia barroca, há um conceito que ainda desconcerta: o universo é indiferente à humanidade, e talvez o pior que possamos fazer é tentar compreendê-lo.
Um terror sem redenção
Diferente do terror tradicional, onde o mal pode ser combatido ou exorcizado, em Lovecraft o horror não é vencido — ele é, no máximo, contido. Os protagonistas não são heróis, mas estudiosos, professores e curiosos que, ao vislumbrar o abismo do real, enlouquecem. Em Dunwich, o confronto final é conduzido por acadêmicos da Universidade Miskatonic, símbolo do saber racional. Mas mesmo eles mal compreendem o que enfrentam. O sacrifício não traz alívio, apenas um suspiro provisório antes da próxima rachadura na realidade.
É por isso que o terror lovecraftiano dialoga tão bem com a modernidade tardia. Vivemos cercados de informação, conectados a bancos de dados infinitos, e ainda assim perdidos. A ciência não responde a tudo, e o progresso não nos salvou do medo. Lovecraft anteviu esse vazio. Ele escreveu sobre o século XXI antes que ele começasse.
Entre a genialidade e a sombra do autor
Nenhuma leitura crítica de Lovecraft hoje é completa sem reconhecer suas contradições e sombras pessoais. O autor de Providence era notoriamente xenófobo, elitista e alimentava ideias racistas que aparecem, de forma explícita ou simbólica, em várias de suas histórias. O Horror de Dunwich, por exemplo, pode ser lido como uma alegoria do medo do “degenerado”, do sangue contaminado, da miscigenação — um reflexo direto de suas obsessões e preconceitos.
Ignorar esses aspectos seria desonesto. Mas rejeitar sua obra em bloco é também ignorar sua contribuição fundadora ao terror moderno. Cabe ao leitor contemporâneo — especialmente ao leitor de terror — saber separar as camadas, enfrentar a obra com consciência crítica e histórica, e reconhecer que o horror verdadeiro também reside em quem escreve sobre ele.
A permanência de Lovecraft
Quase um século depois de sua morte, Lovecraft é mais influente do que nunca. Autores como Stephen King, Clive Barker, Neil Gaiman, Paul Tremblay e Victor LaValle o citam como inspiração — este último, inclusive, ressignificando suas ideias sob uma ótica afro-americana no excelente A Balada do Black Tom. O universo expandido dos Mitos de Cthulhu continua vivo em livros, filmes, RPGs e games.
Culturalmente, Lovecraft sobrevive porque seu medo é mais atual do que nunca. O medo de um mundo que não se encaixa em nossos mapas mentais. O medo da ciência que nos ultrapassa. O medo de que a existência seja um acidente, e que o universo — em sua vastidão — jamais tenha nos notado.
Uma nova tradução para um clássico do medo
É por isso que ler “O Horror de Dunwich” hoje não é apenas uma viagem a um clássico do terror, mas um convite a compreender as raízes de um gênero que, cada vez mais, nos serve de espelho. Uma nova edição traduzida por mim e lançada em 2023 pela editora Cia do Mistério resgata o texto original com fidelidade e vigor, trazendo ao público brasileiro não apenas a história de um vilarejo amaldiçoado, mas um mergulho na gênese de um medo que nos ultrapassa.
A tradução que fiz buscou respeitar a linguagem original, ao mesmo tempo em que facilita o acesso de novos leitores ao universo denso de Lovecraft. É uma oportunidade de reencontro — ou de iniciação — com uma das mentes mais inquietantes da literatura do século XX.
Porque o horror, no fim das contas, não é sobre monstros. É sobre aquilo que desorganiza o mundo como o conhecemos. E ninguém escreveu isso com mais precisão — e inquietação — do que Howard Phillips Lovecraft.
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Rafael da Silva Pereira nasceu em São Paulo, capital, atualmente cursa História pela Universidade Estácio de Sá. Fascinado pelo lado sombrio do horror desde muito jovem, encontrou no terror clássico sua principal fonte de inspiração — influenciado por obras cinematográficas como Halloween (1978), Sexta-feira 13 (1980) e O Massacre da Serra Elétrica (1974).
É autor do livro “Religiões UFO: ufolatria que invade mentes”, publicado pela Editora Cia do Mistério, onde investigou com rigor histórico e olhar crítico as manifestações religiosas ligadas ao fenômeno ufológico.
Além da escrita, Rafael também é divulgador científico e editor-chefe da Revista Giordano, dedicada à difusão da ciência com uma abordagem acessível e interdisciplinar.
Está escrevendo agora seu primeiro terror chamado “Bootzamon”, no qual Rafael dá voz às sombras que sussurram por entre milharais, casas e estradas de Black Hollow. Mais do que uma história de terror, este livro é um mergulho no imaginário de uma América rural marcada por segredos antigos, pactos silenciosos e um mal que nunca desaparece — apenas espera a próxima colheita.