No cinema há diversos gêneros, e com isso, temos filmes que nos causam diversas sensações, sendo elas: medo, ternura, emoção, drama, risos, mas há um filme que causa uma sensação um tanto quanto rara e de uma forma impactante e profunda, sendo ela de incômodo e “Vá e Veja”, de Elem Klimov, pertence a essa categoria e talvez seja o expoente máximo dela. Um filme completamente incômodo, mas necessário.
Desde os primeiros minutos, o filme deixa claro que não nos oferecerá conforto. A fotografia sombria, os figurinos desbotados e bem realistas, além do olhar inocente de Flyora (vivido por Aleksei Kravchenko) nos colocam diante de um mundo que será, em breve, desfigurado pela guerra. A cena em que os camponeses e soldados soviéticos se reúnem para tirar uma fotografia, seguida imediatamente pelo hino da União Soviética, é um prenúncio visual e sonoro da tragédia que está por vir, uma despedida da paz antes do mergulho no inferno causado pelos nazistas aos soviéticos e ao mundo.
A atuação de Kravchenko é cinema em estado puro. Assistimos à sua juventude se dissolver diante dos nossos olhos e essa transformação não é estilizada, nem simbólica. Ela é física. Está na pele, nos olhos, na postura. Em absolutamente todas as reações e expressões de Kravchenko. Flyora é um garoto que vê com um certo romance a guerra, apesar do alerta da sua mãe, mas que mesmo assim vai com um riso imenso no rosto e vemos ao longo da obra esse riso se transformar em choro e desespero. Uma performance que seria digna de Oscar que traduz a desumanização forçada por uma realidade insuportável. O mais chocante? O ator tinha apenas 14 anos, e o que vemos em cena são emoções reais porque Vá e Veja não foi apenas um filme difícil de assistir: foi um filme sobretudo difícil de ser feito e contou com alguns detalhes bastante curiosos.

Klimov filmou com munição real algumas de suas cenas. Armas reais. Bombas reais. O terror que vemos nos olhos de Flyora e dos demais atores, muitas vezes é genuíno, porque o set não era uma “zona segura”. E isso não foi um capricho sádico, mas um esforço quase documental de alcançar a verdade da guerra, não com heroísmo, mas com brutalidade e pavor. Imagina como deve ter sido difícil, de grande risco e responsabilidade gravar cenas com armas e munições reais. Parece algo impensável, mas foi feito.
Uma curiosidade deste filme é que o título original para ele seria “Mate Hitler”, e a proposta era clara: não glorificar, mas denunciar. Esse título para época foi um tanto quanto controverso e polêmico, e por isso, foi alterado para “Vá e Veja”, o que penso ter sido um acerto gigantesco, pois resume muito bem o terror do filme simbolizado por algo que mencionei anteriormente, o jovem Flyora que sai de casa feliz de ir para a guerra e simplesmente testemunha o horror em sua escala máxima. Com o título “Vá e Veja”, Flyora não é uma testemunha solo disso, nós como espectadores somos convidados a testemunhar toda a barbárie demonstrada ao longo de toda a obra de Klimov. Além do título ter um peso filosófico muito grande, porque faz uma menção ao Livro do Apocalipse, sendo ele o Capítulo 6, versículo 7–8 da Bíblia:
“E ouvi a voz do quarto animal, que dizia: Vem, e vê. E olhei, e eis um cavalo amarelo, e o que estava assentado sobre ele tinha por nome Morte; e o Inferno o seguia”

Já o som tem um papel vital. Uma das escolhas mais impactantes é a forma como o filme simula a perda de audição de Flyora, após um bombardeio. Esse ruído abafado nos coloca dentro da cabeça do protagonista e intensifica o isolamento e o desespero. E há o avião, sempre que ele sobrevoa, ouvimos o motor que parece ser um prenúncio do horror que está por vir. Estendo meu comentário não só a estes dois fatos, mas também a todo som de tiros, bombardeios e outros efeitos sonoros de guerra presentes no filme, que são muito bem executados e convincentes.
A direção de Elem Klimov é tão precisa quanto incrível. Lembrando que Klimov é filho da Segunda Guerra Mundial, ele transforma então sua memória em um pesadelo lúcido, onde não há espaço para embelezamentos. A Bielorrússia, cenário da trama, foi a República Soviética mais dizimada pela guerra, perdendo mais de 25% da sua população. E o filme honra essa dor coletiva com uma fidelidade brutal, que culmina de uma maneira terrivelmente simbólica na cena do celeiro (que é inspirada em fatos reais). Ali, a barbárie nazista atinge um nível tão desumano que é impossível assistir sem ser tocado pela cena. Simplesmente é uma cena de partir o coração e querer chorar. É provavelmente, uma das cenas mais dolorosas já registradas em um filme e, infelizmente, espelho de algo que realmente aconteceu, como disse anteriormente. E aqui deixo uma reflexão, quantas e quantas “cenas do celeiro” existiram durante a Segunda Guerra Mundial? Quantas e quantas cenas como elas podemos presenciar nos nossos tempos atuais? Pois é, fico chocado somente de pensar nisso.

“Vá e Veja” é um filme anti-guerra não apenas por denunciar a violência, mas por nos fazer sentir o que ela causa. O desconforto que ele provoca não é acidental é seu projeto estético e político. Em tempos em que o mundo continua a repetir os mesmos erros, como estamos vendo diante dos nossos olhos através dos conflitos envolvendo Rússia, Ucrânia, Israel, Palestina, Irã e EUA, o filme ganha ainda mais urgência. São sempre os inocentes que pagam. Os líderes, esses, jamais pisam no front, mas suas mãos jamais estão limpas. Pelo contrário, estão cobertas de sangue.
Além de sua força narrativa e simbólica, há também um cuidado notável com o som, com a imagem, com o ritmo. A trilha sonora, que mescla música clássica e o som do próprio ambiente em guerra, é responsável por manter a atmosfera sempre à beira do colapso. Há beleza aqui, sim, mas é uma beleza cruel, dolorosa, feita para que a gente não se esqueça. E de fato, jamais vou me esquecer deste filme e de tudo que vi.
Não estamos falando do melhor filme de guerra já feito. Isso seria limitar sua grandeza. Vá e Veja é um dos melhores filmes da história do cinema! Um monumento à dor, à perda e à necessidade de lembrar. É o tipo de filme que você precisa ver antes de morrer e que, ao vê-lo, morre um pouco também.


Rafael da Silva Pereira nasceu em São Paulo, capital, atualmente cursa História pela Universidade Estácio de Sá. Fascinado pelo lado sombrio do horror desde muito jovem, encontrou no terror clássico sua principal fonte de inspiração — influenciado por obras cinematográficas como Halloween (1978), Sexta-feira 13 (1980) e O Massacre da Serra Elétrica (1974).
É autor do livro “Religiões UFO: ufolatria que invade mentes”, publicado pela Editora Cia do Mistério, onde investigou com rigor histórico e olhar crítico as manifestações religiosas ligadas ao fenômeno ufológico.
Além da escrita, Rafael também é divulgador científico e editor-chefe da Revista Giordano, dedicada à difusão da ciência com uma abordagem acessível e interdisciplinar.
Está escrevendo agora seu primeiro terror chamado “Bootzamon”, no qual Rafael dá voz às sombras que sussurram por entre milharais, casas e estradas de Black Hollow. Mais do que uma história de terror, este livro é um mergulho no imaginário de uma América rural marcada por segredos antigos, pactos silenciosos e um mal que nunca desaparece — apenas espera a próxima colheita.