O movimento punk brasileiro não foi importado — foi reinventado. Nascido em meio ao fim da ditadura militar, nas periferias das grandes cidades, ele carregava em suas guitarras distorcidas e vocais rasgados um grito de revolta e sobrevivência. Mais do que um estilo musical, o punk por aqui se tornou um instrumento de denúncia, de organização política e de afirmação cultural de uma juventude marginalizada.
O nascimento de uma contracultura
O punk chegou ao Brasil no final dos anos 1970, principalmente por meio de discos importados, revistas e relatos de brasileiros que visitavam a Europa ou os Estados Unidos. As primeiras influências vieram de bandas como Sex Pistols, The Clash, Ramones e Dead Kennedys. Mas o que se viu aqui foi uma transformação radical desse modelo: o punk brasileiro rapidamente se desprendeu da estética original anglo-americana e passou a refletir as urgências sociais locais.
Diferentemente do cenário inglês, onde o punk era, em grande medida, uma reação ao desemprego e ao niilismo pós-industrial, no Brasil ele surgiu num país recém-saído de duas décadas de regime militar, com a juventude operária sufocada entre a repressão, a miséria e a falta de perspectiva.
São Paulo foi o epicentro da explosão punk, especialmente em bairros operários da Zona Leste e no ABC Paulista — regiões já marcadas por greves e efervescência política. Era uma juventude que cresceu entre favelas, cortiços e galpões fabris, e que encontrou no punk uma forma de expressar sua indignação.

Os fanzines e a cultura alternativa
Sem apoio da mídia, das gravadoras ou dos espaços culturais oficiais, os punks brasileiros criaram sua própria rede de comunicação e difusão: os fanzines. Feitos com colagens, canetas hidrocor, máquina de escrever e muito xerox, os zines eram verdadeiros gritos impressos. Ali estavam não só as letras das bandas, mas também críticas sociais, manifestos anarquistas, relatos de abuso policial, denúncias contra o sistema, poemas, ilustrações e até entrevistas com bandas estrangeiras.
Alguns dos fanzines mais importantes da época foram:
- O Dilúvio, de São Paulo, que abordava temas sociais com seriedade jornalística;
- Punk Rock, um dos primeiros zines do gênero no país;
- Reação, com forte influência anarquista;
- Sub, da cidade de São Bernardo do Campo, voltado à cena do ABC paulista.
Os fanzines não apenas registravam a história viva do movimento, como também criavam redes de solidariedade entre punks de diferentes regiões do país — e até da América Latina. Era uma verdadeira imprensa marginal, que formava opinião e alimentava o espírito do “faça você mesmo” (DIY), pilar central do movimento.

Punk versus polícia: uma guerra declarada
Desde o início, o movimento punk foi hostilizado pelas autoridades. Na visão da polícia — ainda imersa na lógica da repressão da ditadura — os punks eram marginais, perigosos, drogados e subversivos. O simples ato de usar moicano, jaqueta de couro ou coturno podia significar prisão, espancamento ou humilhação pública.
Nos anos 1980, as invasões policiais em shows se tornaram comuns. As apresentações terminavam em tumulto, com gás lacrimogêneo, cassetetes e dezenas de jovens presos — muitas vezes, menores de idade. Havia também uma guerra ideológica travada nos jornais, que criminalizavam o movimento, o associando ao vandalismo, à delinquência e ao satanismo. A repressão era não só física, mas também simbólica.
Um caso emblemático aconteceu em 1982, no Largo São Francisco (SP), quando uma manifestação cultural organizada por punks terminou com dezenas de prisões e violência policial. Muitos jovens foram fichados apenas por estarem no local. A perseguição fez com que o movimento se tornasse ainda mais underground — refugiando-se em espaços alternativos, ocupações e galpões improvisados.
Mas a repressão também teve efeito contrário: fortaleceu a união entre os punks e consolidou a cena como uma rede de resistência e apoio mútuo.

Música como arma: letras, política e periferia
As letras do punk brasileiro não falavam de moda ou de tédio adolescente. Falavam de fome, de exploração, de genocídio da população preta e periférica, de injustiça, de corrupção e da violência do Estado. Eram ácidas, curtas, diretas e desesperadas.
Bandas como:
- Cólera — com sua visão pacifista e ambientalista, foi um dos grupos mais politizados e internacionalmente reconhecidos;
- Inocentes — trouxe uma sonoridade mais limpa e articulou pontes com o hardcore;
- Olho Seco — adotou uma abordagem mais crua e violenta, espelhando a raiva das ruas;
- Ratos de Porão — começou no punk, mas evoluiu para o crossover thrash, com críticas ferozes à hipocrisia social.
Muitas dessas bandas não apenas tocavam, mas organizavam shows, produziam fanzines e articulavam redes de ação direta.
O punk também foi um espaço onde emergiram debates sobre racismo, feminismo e a luta LGBTQIA+, embora com tensões e conflitos internos. Nos anos 1990 e 2000, surgiriam bandas mais diversas, como o Devotos do Ódio (PE), que misturava punk com maracatu, e bandas feministas como o Dominatrix.
Autonomia, política e resistência cultural
O punk brasileiro se alicerçou na ideia de autonomia radical. Os punks criavam seus próprios selos, produziam suas camisetas, montavam estúdios caseiros, organizavam shows independentes, publicavam livros artesanais e criavam suas próprias redes de distribuição.
Coletivos anarquistas, espaços culturais ocupados, bibliotecas libertárias e feiras alternativas nasceram dessa filosofia. Muitos punks participaram de lutas maiores, como movimentos por moradia, contra a violência policial, em defesa dos animais e pelo veganismo.
Mesmo com todas as contradições internas, o punk brasileiro ajudou a construir uma cena cultural ativa e engajada fora dos círculos tradicionais da arte e da política.
O punk hoje: sobrevive, resiste, se reinventa
Nos dias atuais, o punk não ocupa mais os holofotes, mas segue firme nas margens — onde sempre esteve. Novas gerações continuam produzindo zines (agora digitais), criando selos independentes, ocupando espaços culturais e organizando festivais.
Bairros periféricos seguem sendo celeiro de bandas novas, e o punk segue conectado a outras lutas sociais. Em tempos de retrocessos políticos, censura e violência estatal, o grito punk continua atual — mais necessário do que nunca.
O punk no Brasil não foi uma moda passageira. Foi e continua sendo um movimento político, cultural e de resistência que deu voz a quem nunca teve espaço. Foi marginal porque o centro o excluiu. Foi radical porque o sistema era (e é) opressor. E continua sendo atual porque, infelizmente, os problemas sociais que denunciaram nos anos 1980 seguem vivos em 2025.
Enquanto houver injustiça, desigualdade e opressão, haverá punk!
Caso queira saber um pouco mais sobre o movimento punk no Brasil, indico para você o documentário “Não é Permitido: um recorte da censura ao Punk Rock no Brasil”. Ele está disponível no Youtube e pode ser assistido gratuitamente neste link: https://www.youtube.com/watch?v=EEJHRoy2gAo

Rafael da Silva Pereira nasceu em São Paulo, capital, atualmente cursa História pela Universidade Estácio de Sá. Fascinado pelo lado sombrio do horror desde muito jovem, encontrou no terror clássico sua principal fonte de inspiração — influenciado por obras cinematográficas como Halloween (1978), Sexta-feira 13 (1980) e O Massacre da Serra Elétrica (1974).
É autor do livro “Religiões UFO: ufolatria que invade mentes”, publicado pela Editora Cia do Mistério, onde investigou com rigor histórico e olhar crítico as manifestações religiosas ligadas ao fenômeno ufológico.
Além da escrita, Rafael também é divulgador científico e editor-chefe da Revista Giordano, dedicada à difusão da ciência com uma abordagem acessível e interdisciplinar.
Está escrevendo agora seu primeiro terror chamado “Bootzamon”, no qual Rafael dá voz às sombras que sussurram por entre milharais, casas e estradas de Black Hollow. Mais do que uma história de terror, este livro é um mergulho no imaginário de uma América rural marcada por segredos antigos, pactos silenciosos e um mal que nunca desaparece — apenas espera a próxima colheita.